No rasto de Amadeo de Souza-Cardoso, descobrimos uma cidade feita de confeitarias de doces conventuais, restaurantes que servem os sabores da região com bom vinho a acompanhar, hotéis com varanda para o rio, e onde a arte e a literatura estão a cada esquina. Vamos a Amarante?



Uma imagem do quadro Cozinha da Casa de Manhufe, pintado por Amadeo de Souza-Cardoso em 1913, é entregue aos visitantes quando entram na divisão original, mantida intacta pela família do artista, que ainda hoje habita a moradia. Apesar da desconstrução espacial ao estilo cubista, reconhecem-se na pintura os arcos de granito, a enorme lareira ladeada por bancos corridos e com potes de ferro ao borralho ou a mesa central com tampo negro. “É um ponto de viragem no seu percurso artístico”, explica Carolina Mendes, da Stay to Talk, a empresa turística responsável pelo workshop A Tela e Eu em Casa de Amadeo, uma das raras oportunidades de visitar o lugar onde o artista nasceu, em 1887, e produziu grande parte da sua obra, aberto ao público só nestas ocasiões. A vida breve mas intensa do pintor (morreu em 1918, em Espinho, vítima da gripe espanhola, com apenas 30 anos) proporciona inúmeras descobertas. Porque não apresentá-las com criatividade? Sem anúncio, a figura de Amadeo irrompe pela cozinha e suspira pelos tempos de boémia passados em Paris. Ao longo da tarde, outros atores do grupo local T’Amaranto, no papel de familiares do pintor, hão de contar um pouco da sua história.

Depois, os participantes são convidados a vestir a bata de artista. A formadora Vera Márcia ajuda a dissipar o medo da tela em branco e desenha a lápis o esquisso de obras conhecidas do pintor. “Amadeo não queria pertencer a uma escola, tanto vagueava pelo Futurismo como pelo Impressionismo. Convido-vos a fazerem a vossa interpretação destes quadros”, desafia Vera, cuja janela do quarto, quando era pequena, dava para o atelier do pintor e que cresceu fascinada pela sua obra. Entre pincéis e tintas a óleo, durante uma hora, o silêncio toma conta da sala do Hotel Rural Quinta da Cruz, onde, neste dia, decorre a atividade – quando está bom tempo, ficam-se pelos jardins da casa de Manhufe. Ninguém quer fazer má figura, até porque levará para casa a pintura. No final, como recompensa pelo trabalho árduo, há uma merenda tradicional, com produtos da terra e uma pequena descrição da sua história. “Procuramos envolver o máximo de parceiros locais nas nossas atividades”, sublinha Carolina Mendes, da Stay to Walk.

Uma cidade criativa
Não faltam projetos artísticos a dinamizar a região – Amarante integrou, em 2017, a Rede de Cidades Criativas da UNESCO, graças a um património em que consta, por exemplo, a viola amarantina, e a uma atmosfera musical única, onde tanto se destaca a Orquestra do Norte como grupos populares e bandas de garagem. “Podia dar uma explicação mais poética para esta dinâmica. A paisagem lindíssima, inspiradora, com algo de místico quando o nevoeiro cai sobre o rio Tâmega”, diz Nuno Ribeiro, o proprietário da Officina Noctua, um espaço multidisciplinar que congrega uma oficina de serigrafia e ilustração, venda de objetos em segunda mão, restauro e muito mais. “O facto é que sempre tivemos ensino artístico a puxar pelos jovens”, nota.

Quando abriu a Noctua, há cerca de ano e meio, numa rua do centro histórico, Nuno acreditou que poderia beneficiar da maior afluência de turistas. E desafiou artistas da cidade, de várias gerações, como Verena Basto (pintura), Joana Antunes (ilustração), Maria João Vasconcelos (azulejaria) ou Lia Vasconcelos (cerâmica), a exporem o seu trabalho e a envolverem-se em projetos coletivos. Como o XX Dessins do Século XXI, uma caixa com 20 serigrafias assinadas por 20 autores, que reinterpreta o álbum XX Dessins, feito em 1912 por Amadeo de Souza-Cardoso. A partir da assinatura deste nome maior das artes, Nuno criou ainda uma fonte tipográfica, à venda no site da Officina Noctua.
Da parte do município, também não faltam planos na área cultural e de lazer. A funcionar desde 11 de fevereiro estão as Termas de Amarante, num edifício moderno, construído de raiz, junto ao Tâmega. “Desde miúdo que ouço falar nas termas”, conta José Luís Gaspar, o presidente da câmara, recordando os relatos das curas termais nas antigas Caldas das Murtas, encerradas em meados do séc. XX, do outro lado do rio. As suas águas sulfurosas são indicadas para o tratamento de doenças do aparelho respiratório, além de doenças reumáticas e musculoesqueléticas. Quase todos os tratamentos exigem prescrição médica, mas o Balneário Termal dispõe de banho turco, massagens e piscina interior.
O entusiasmo toma conta de José Luís Gaspar quando fala do que está para vir. Um museu da cidade, que implicará a reconstrução do antigo Solar dos Magalhães (destruído durante as invasões francesas), com assinatura de Siza Vieira; a recuperação de 13 km da margem direita do Tâmega para dar lugar a um parque ao longo do rio, idealizado pelo arquiteto paisagista Sidónio Pardal (autor do Parque da Cidade, no Porto); um projeto de Souto Moura para o mercado municipal e área adjacente; e, ainda, a criação de uma Plataforma das Artes naquela que foi a antiga fábrica de metalomecânica dos Matias. Para que esta continue a ser uma cidade criativa.

Instalado no antigo convento dominicano de S. Gonçalo de Amarante, um edifício do final do séc. XVI reconvertido pelo arquiteto Alcino Soutinho, o Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso guarda cerca de 25 obras do pintor e trabalhos de outros artistas amarantinos, como António Carneiro e Acácio Lino. A visita fica por conta da empresa turística Inside Experiences – que também realiza workshops de desenho no antigo atelier do pintor, na Casa do Ribeiro, recentemente recuperada pela família. “No centenário da morte de Amadeo, em 2018, houve um boom de visitantes”, conta João Ribeiro, da Inside Experiences. Se juntarmos a estas figuras outros nomes do campo das letras, naturais de Amarante, como Teixeira de Pascoaes e Agustina Bessa-Luís, percebe-se o contributo cultural desta região, e o quanto este foi importante, por força de uma aristocracia rural com poder económico.

Foguetes e vinho verde
A rivalizar com os ilustres da terra estão os doces conventuais de Amarante. Pela cidade não faltam casas afamadas, entre elas a Confeitaria da Ponte, a mais antiga, criada em 1930, e das poucas que sempre se mantiveram em laboração. Foguetes, lérias, brisas do Tâmega, papos de anjo e São Gonçalos são as cinco especialidades originárias do extinto Convento de Santa Clara, cujas receitas foram preservadas pelas casas senhoriais e continuam a atrair quem visita a cidade. No piso inferior ao do atendimento, encontramos quatro pasteleiras imparáveis, prontas a partilhar os segredos da confeção. É um trabalho manual meticuloso, feito a uma velocidade admirável. O recheio, preparado com 260 ovos e 12 kg de açúcar, é utilizado para encher as folhas de hóstia dos papos de anjo (recortadas à mão, em meia-lua) ou os barquinhos das brisas do Tâmega. “Se comermos apenas um doce, temos calorias para um dia inteiro”, brinca Ricardo Ribeiro, proprietário da Confeitaria da Ponte desde 2010. Uma frase em que ficaremos a matutar durante a prova que se segue, com vinho verde a cortar a intensidade do açúcar.

Mas voltemos a adoçar a boca para falar da reabertura da histórica Confeitaria Lailai, no verão passado, depois de 20 anos encerrada. “Durante esse tempo, não conseguia passar pela rua”, confessa Ana Maria Baptista, filha da fundadora, Maria Adelaide. As letras em néon verde na fachada ou gravadas a bronze na calçada mantiveram-se na reabilitação, assim como a arquitetura interior. “Está igual ao que era, a minha mãe tinha muito requinte e bom gosto”, sublinha Ana Maria, que tinha 2 anos quando a confeitaria foi inaugurada, em 1947, e acompanhou o seu crescimento. O sentido apurado na confeção dos doces conventuais e das especialidades da casa – trouxas e fios de ovos, pingos da tocha, amarantinos, torta de fruta… – foi igualmente preservado. A fama vinda de longe garantiu-lhes visitas de clientes antigos, de todo o País, para rever a Lailai. Como se o tempo tivesse parado naquela varanda sobre o Tâmega.
Incursões gastronómicas
No centro histórico, com o seu quê de aristocrático, do lado oposto ao Convento de S. Gonçalo, surge a Casa da Calçada, num imponente palácio do séc. XVI. O hotel de cinco estrelas, pertencente à cadeia Relais & Châteaux, ganhou lugar nos roteiros por conta do restaurante Largo do Paço, com uma Estrela Michelin desde 2005, mantida pelo atual chefe de cozinha Tiago Bonito. Mas há um novo pretexto para uma incursão gastronómica, com a abertura, no verão de 2018, do Canto Redondo, um restaurante mais descontraído e com um serviço mais informal. “Agarramos nos clássicos da cozinha portuguesa, apresentados com mais cuidado, até porque não podemos desvirtuar a nossa identidade”, explica Tiago Bonito. Polvo à lagareiro ou arroz de pato são algumas das sugestões, quer ao almoço quer ao jantar.

Também na linha do Tâmega, na outra margem, está o Hostel des Arts, aberto em 2017 (com suítes e camaratas), no belo edifício de portadas azuis onde outrora funcionou o Grande Hotel Silva, o primeiro a existir na cidade, no início do séc. XX. Ainda hoje pertence à família de Teixeira de Pascoaes, e no bar são inúmeros os registos das ligações ao mundo das artes e das letras, como fotografias e cartas de Almada Negreiros, Sophia de Mello Breyner Andresen, Agustina Bessa-Luís, Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny (os quartos são quase todos batizados com alguns destes nomes). Por cima da lareira, está um quadro de João Vasconcelos, avô das atuais proprietárias. O bar do hostel ganhou uma dinâmica própria e tornou-se ponto de encontro na cidade. Ali, pode beber-se um cocktail, ouvir música (sobretudo, jazz), ver uma exposição ou assistir a concertos. Quem procure uma noite mais concorrida deve rumar ao Surviaria, o primeiro bar da cidade dedicado às cervejas artesanais. Além das marcas nacionais e estrangeiras, à pressão ou em garrafa, há snacks que servem de acompanhamento. O ambiente é descontraído, com blues e rock.

A 14 km da cidade de Amarante, numa propriedade de 30 hectares, ergueu-se o Monverde Wine Experience Hotel, o primeiro hotel vínico da região do vinho verde, um investimento de um dos seus maiores produtores, a Quinta da Lixa. Três anos e meio após a abertura, estão a ampliar as instalações com 16 novos quartos (a juntar aos 30 já existentes), implantados entre as vinhas, com data de conclusão prevista para junho. “A experiência diz-nos que podemos crescer em quantidade e em qualidade”, nota Miguel Ribeiro, diretor do hotel, gerido pela Unlock Boutique Hotels, distinguido, em três anos consecutivos (2016-2018), nos Best of Wine Tourism. Os programas enoturísticos são a grande aposta, oferecendo desde tratamentos de vinoterapia, no spa, a menus de degustação com harmonização de vinhos. “Queremos inovar, sendo fiéis ao que de bom temos na região e em Portugal”, diz o chefe de cozinha Carlos Silva, após servir um cozido à portuguesa fora da caixa, sem perder todo o sabor dos fumados e dos legumes, que há de ficar na memória.

TURISMO FORA DA CAIXA
Promover a gastronomia, assim como as histórias, tradições, lendas, cultura e paisagens da região, é o objetivo da Inside Experiences, a empresa turística criada por João Ribeiro e Liliana Pereira, de regresso à terra natal, após anos a trabalharem em cruzeiros, fora do País. “Sempre quisemos voltar e a afluência de turistas a Amarante tem sido cada vez maior”, conta João. Para levarem os visitantes a prolongar a estada, propõem tours pelo centro histórico, workshop e degustação de doces conventuais, passeios pelas serras da Aboboreira e do Marão, workshop de cerâmica numa oficina tradicional de barro preto, visitas a quintas produtoras de vinho verde com respetivas provas e ainda workshops de desenho no antigo atelier de Amadeo de Souza-Cardoso (T. 91 840 9757/91 954 6938, €7-€120).
Também a Stay to Talk – Instituto de Imersão Cultural, criada em 2018, proporciona diversas atividades para conhecer o território e algumas das suas maiores figuras, envolvendo ao máximo os habitantes locais (T. 91 223 3696). O workshop A Tela e Eu em Casa de Amadeo (€74,50/pessoa) inclui a visita à cozinha da casa do artista, em Manhufe, materiais de pintura e tela, além de um piquenique com produtos regionais. Sugerem ainda a escapada Stay with Amadeo (€269,90) e a tour Amarante e Amadeo Numa Pegada Ecológica (€59,90).
COMER
Confeitaria Lailai R. 31 de Janeiro, 102-104, Amarante > T. 255 440 061 > seg-sex, dom 8h30-20h30, sáb 8h30-24h
Canto Redondo Casa da Calçada > Lg. do Paço, 6, Amarante > T. 255 410 830 > seg-dom 12h30-15h, dom-seg 19h30-22h
Pobre Tolo
Da mesma proprietária do histórico Zé da Calçada, o restaurante aposta nos ingredientes e sabores da cozinha tradicional portuguesa. A começar no couvert, com seis sugestões, desde alheira com grelos e ovos a queijos e enchidos. Av. General Silveira, 169, Amarante > T. 91 925 9228 > seg, qua-dom 12h-15h, 19h-22h
Confeitaria da Ponte
Foguetes, lérias, brisas do Tâmega, papos de anjo e São Gonçalos são as cinco especialidades originárias do extinto Convento de Santa Clara. R. 31 de Janeiro, 186, Amarante > T. 255 432 034 > seg-dom 8h30-20h
Taberna do Miranda
Casa de petiscos, aberta no final de janeiro, com tábuas de queijos e enchidos, pataniscas, moelas, rojões… tudo feito na hora. R. 31 de Janeiro, 103, Amarante > T. 93 890 7654 > ter-qui 11h-19h, sex 11h-22h, sáb-dom 9h-22h
Surviaria
Bar dedicado às cervejas artesanais, à pressão ou em garrafa. Lg. Conselheiro António Cândido, 170, Amarante > T. 91 283 6675 > ter-qui 11h-24h, sex-sáb 11h-4h
